Pouco consideradas pela ciência, terapias africanas são estudadas como possíveis tratamentos contra novo coronavírus — ao mesmo tempo, falsas curas se espalham pelo continente
Chimaraoke Izugbara ficou preocupado quando o primeiro caso de Covid-19 foi confirmado no continente africano, mais especificamente no Egito, em 14 de fevereiro de 2020. O antropólogo especialista em saúde pública e diretor do Centro Internacional de Pesquisa sobre Mulheres (ICRW), nos Estados Unidos, sabe que, além da falta de recursos para prover tratamento de qualidade contra o novo coronavírus, diversos países da África têm outro desafio: conciliar a medicina tradicional de suas culturas com o conhecimento científico.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a medicina tradicional é a soma do conhecimento, da habilidade e das práticas baseadas em teorias, crenças e experiências de indígenas e povos de diferentes culturas. Comprovado cientificamente ou não, em diversos lugares do mundo o método faz parte da manutenção da saúde, da prevenção, do diagnóstico, da melhoria ou do tratamento de doenças físicas e mentais.
Em entrevista a GALILEU, Izugbara contou que o “trauma” de experiências passadas o deixa alerta: em 2014, pelo menos duas pessoas morreram e cerca de 20 foram hospitalizadas na Nigéria, seu país natal, depois de ingerirem quantidades excessivas de solução salina. Segundo Izugbara, à época, posts em redes sociais diziam que a solução ajudaria as pessoas a evitarem a infecção pelo vírus causador do ebola.SAIBA MAIS
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Na pandemia de 2020, o temor do nigeriano voltou quando a rede de televisão francesa France24 publicou uma entrevista com o presidente de Madagascar, Andry Rajoelina, no último dia 12 de maio. Na conversa, o governante afirmou que o país teria encontrado a cura para o Sars-CoV-2: um tônico feito a partir da planta Artemisia annua, batizado de Covid-Organics.
O anúncio veio dias depois de Lova Hasinirina Ranoromaro, chefe de gabinete do presidente, dizer à BBC que a fórmula, produzida pelo Instituto Malgaxe de Pesquisa Aplicada (IMRA), fora testada em 20 pessoas com Covid-19 ao longo de três semanas. Segundo o governo de Madagascar, dois pacientes teriam sido curados até então.
A preocupação de Izugbara não significa que o especialista não considere a medicina tradicional e o trabalho dos curandeiros extremamente importantes. “Há muito que podemos descobrir com os métodos tradicionais”, pondera. “Algo que devemos aprender com os curandeiros, por exemplo, é buscar tratamentos e curas em nosso meio ambiente, na fauna e na flora ao nosso redor.”
De geração para geração
Segundo a OMS, ao menos 80% das pessoas na África usam plantas medicinais para cuidar da saúde. Um estudo liderado por especialistas da Universidade de Serra Leoa e publicado no British Medical Journal em 2018 mostra que diversos fatores explicam o uso de ervas para tratar problemas de saúde — e dentre eles, é claro, está a tradição. Além da crença de que vegetais são alternativas mais “naturais”, os pesquisadores concluíram que o boca a boca e a associação do tratamento às crenças espirituais têm grande influência.
Ainda assim, o sanitarista Gidiun Peliegho, líder de um comitê de pesquisas sobre medicina tradicional africana em Camarões, acredita que o principal motivo pelo qual as pessoas continuam recorrendo ao método é outro: a precariedade dos sistemas de saúde nas diferentes nações do continente. “O fácil acesso à medicina tradicional nas comunidades [mais distantes] também estimula a prática”, observa o especialista, em entrevista exclusiva.
A opinião de Peliegho é corroborada tanto pelo artigo do British Medical Journal quanto pelo relatório Estratégia de Medicina Tradicional da OMS 2014-2023, publicado em 2013. O documento aponta que a proporção de curandeiros tradicionais na África é de 1 para 500 pessoas, enquanto a de médicos é de 1 para 40 mil.
Entretanto, não são apenas os moradores das regiões rurais que utilizam ervas e outras plantas. Mesmo quem mora em grandes cidades e tem acesso a médicos e hospitais utiliza a medicina tradicional. E por quê? Para Peliegho, Izugbara e outros cientistas, a resposta é simples: porque, muitas vezes, funciona.
Ciência como aliada
Um estudo publicado no Current Pharmacogenomics and Personalized Medicine em 2018 estima que entre 40% e 50% dos medicamentos que utilizamos hoje em dia contêm princípios ativos retirados de vegetais — e grande parte deles foi descoberta graças à medicina tradicional. Um exemplo é a aspirina, que já era usada no Antigo Egito.
O interesse do resto do mundo pela planta cresceu a partir do século 18, quando o reverendo Edward Stone resolveu usar o salgueiro para tratar dores nas articulações — e funcionou. Depois disso, em 1763, Stone começou a investigar a erva e descobriu que ela também poderia ser utilizada no tratamento de outras condições, como a malária.
As “descobertas” de Stone se disseminaram pela Europa, e as propriedades do salgueiro começaram a ser avaliadas por outros cientistas. Nos anos 1800, pesquisadores de todo o continente começaram a explorar uma das substâncias presentes na planta, o ácido salicílico.
Em 1829, o farmacêutico francês Henri Leroux isolou a substância e, anos depois, em 1874, o químico alemão Hermann Kolbe descobriu a versão sintética do ácido. A droga, entretanto, causava problemas gástricos em quem a usava — e por isso os especialistas continuaram tentando aperfeiçoá-la.
Foi assim que, na década de 1890, o químico Felix Hoffmann, que trabalhava na empresa farmacêutica alemã Bayer, acabou desenvolvendo uma versão aperfeiçoada da droga: o ácido acetilsalicílico. Não muito tempo depois, em 1899, o remédio foi batizado de aspirina e passou a ser comercializado.
Mas os europeus não foram os primeiros a usarem as folhas de salgueiro para tratar dores. No Papiro de Ebers, documento de 1550 a.C que descreve diversos tratamentos utilizados durante a Antiguidade Egípcia, há justamente a menção à casca de um tipo de salgueiro que era receitada para tratar sensações dolorosas.
Os historiadores não sabem exatamente como, mas a partir daquela época a utilização da planta se popularizou e se espalhou pelo mundo. “O uso da casca de salgueiro para alívio da dor continuou na Grécia Antiga, onde Hipócrates a recomendou para a dor do parto, até a época romana, quando seu uso foi registrado por Plínio, o Velho”, explica um estudo sobre a história da aspirina publicado no British Journal of Haematology.
São exemplos como este que, segundo Izugbara, provam que a medicina tradicional não é sinônimo de obsolescência e ignorância — associar esses fatores, na verdade, pode ser um tanto preconceituoso. “As pessoas não entendem que, no processo de escolha de uma folha ao invés da outra, há muito conhecimento”, pontua o especialista.
De acordo com ele, há uma longa fase de experimentação com as plantas antes dos curandeiros as utilizarem para tratar humanos. “Os vegetais são testados primeiro em animais e depois nas pessoas, começando por doses baixas”, explica Izugbara. “Medicina tradicional não é apenas questão de crença.”
É exatamente por saberem disso que as autoridades de saúde de diversos países africanos pesquisam a fauna e a flora locais. Para alunos de medicina e farmácia, inclusive, estudar os métodos tradicionais é obrigatório em países como República Democrática do Congo, África do Sul e Tanzânia. E utilizar esses artifícios naturais não significa inutilizar a medicina contemporânea — em muitos países da África, ambas têm uma relação simbiótica. “As pessoas sabem que não há cura para a Covid-19 no momento, então tentam se manter muito saudáveis usando plantas da medicina tradicional conhecidas por fortalecer o sistema imunológico”, relata a Devina Lobine, farmacologista das Ilhas Maurício e especialista em costumes africanos.
Entretanto, essa “aliança” deve ser feita com base na ciência, pois o uso indevido desses vegetais ou a combinação deles com outras substâncias pode ser prejudicial. Um exemplo é a utilização do chamado “arbusto do câncer” (Sutherlandia Frutescens), erva consumida por muitas pessoas que têm o vírus do HIV para reforçar a imunidade.
Em um texto publicado no The Conversation em 2018, a bioquímica Chrisna Gouws, da Universidade North-West, na África do Sul, descreve os perigos da combinação da planta com o coquetel de remédios para o tratamento da aids. “Já foi demonstrado que [a Sutherlandia Frutescens, quando tomada em conjunto com os medicamentos,] diminui os níveis plasmáticos do antirretroviral atazanavir no organismo, reduzindo sua eficácia anti-HIV”, escreveu a especialista.
O caso do “arbusto do câncer” evidencia a linha tênue que existe entre a eficácia da medicina tradicional e os seus potenciais perigos. Enquanto diversas ervas são utilizadas há gerações na África, pouco se sabe sobre sua interação com medicamentos contemporâneos e o que podem causar em pacientes com doenças “novas”, como a Covid-19.
É justamente por isso que Chimaraoke Izugbara condena a fala de Andry Rajoelina, presidente de Madagascar, sobre o uso da Artemisia annua para tratar a infecção pelo novo coronavírus. O especialista ressalta o fato de que, quando o governante afirmou a eficácia da planta contra a Covid-19, nenhum artigo científico sobre o assunto havia sido publicado.
“Vai ser difícil para ele [Andry Rajoelina] voltar atrás se a planta for ineficaz ou prejudicial”, avalia Izugbara. “Será como o que aconteceu nos Estados Unidos, onde o presidente deu a impressão de que a cloroquina e a hidroxicloroquina eram uma cura para o coronavírus mesmo sem estudos para corroborar.”
A Artemisia
Não foi por conta da Covid-19, entretanto, que a Artemisia annua ganhou popularidade: há anos vegetais do mesmo gênero são utilizados na África para tratar doenças como a malária. Além disso, em 2015, a chinesa Tu Youyou foi laureada com o Prêmio Nobel de Medicina por ter descoberto, entre outras coisas, os princípios ativos da planta, a artemisinina e a diidroartemisinina.
Quando o novo coronavírus tomou conta do mundo, uma equipe do Instituto Max Planck, na Alemanha, decidiu estudar as propriedades da planta para tratar a Covid-19. “A Artemisia annua e as artemisininas já se mostraram amplamente úteis no tratamento de diferentes vírus, como o Sars-Cov-1”, explica Peter Seeberger, líder da pesquisa, em entrevista a GALILEU. “Estamos testando diferentes extratos, compostos puros e suas misturas em ensaios de infecção celular.”
Mas, se as propriedades da Artemisia já são conhecidas há tanto tempo, por que sua utilização em países da África para tratar a Covid-19 gerou tanta polêmica? Para Devina Lobine, embora a falta de evidências científicas seja um fator importante, o principal motivo é um antigo conhecido dos cientistas da África. “Há muito preconceito contra a medicina tradicional africana”, afirmou a especialista. “Se a planta proposta por Madagascar fosse europeia, por exemplo, haveria uma resistência muito menor à realização de testes com ela.”
Como explica Lobine, uma das consequências do prejulgamento da medicina tradicional é a falta de investimento na ciência africana por parte de instituições estrangeiras, incluindo a própria OMS. Essa falta de financiamento, por sua vez, abre espaço para que a fauna, a flora e o conhecimento das centenas de povos da África sejam explorados por cientistas de outros lugares.
Chimaraoke Izugbara concorda com a cientista e pontua que o sistema é semelhante ao que ocorria na África no passado. “O pior é que, às vezes, os exploradores não são éticos. Muitas vezes os medicamentos são produzidos a partir do conhecimento tradicional — e as pessoas da África nem mesmo têm acesso a eles.”
Após a entrevista concedida pelo presidente de Madagascar, outros países no continente optaram por comprar o tônico de Artemisia, o que levou a OMS a aprovar testes com a erva no tratamento da Covid-19. “A OMS está trabalhando com instituições de pesquisa para selecionar produtos de medicina tradicional que possam ser investigados quanto a eficácia e segurança clínicas do tratamento da Covid-19”, afirmou a organização em comunicado.
Lobine vê a declaração da OMS como um avanço. “É preciso apoiar nossos pesquisadores locais. Não é hora de lutar uns contra os outros, mas de se unir em busca de uma solução”, afirma. “Se encontrarmos uma cura para a Covid-19, o tratamento não será usado apenas na África, mas no mundo todo.” E é exatamente por isso que em momentos como esse todo o conhecimento é importante — não importa de onde ele vem.