No Brasil, muitos estranham ao saber que na China são consumidos, por exemplo, morcegos, cobras, ratos e pangolins. Porém, por aqui, também há em alguns cardápios regionais carnes que vão além das tradicionais de vaca, porco e frango.
“Em muitas regiões brasileiras, principalmente rurais e no interior, a exemplo do Pantanal, é comum comer carne de roedores como capivara, cutia, preá e até mesmo jacaré”, explica Paulo Olzon, clínico e infectologista da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo)
Em 2017, uma pesquisa da UFAC (Universidade Federal do Acre) com 550 entrevistados apontou que 78% consomem ou consumiram carne de animal selvagem, sendo a paca e o tatu as espécies mais procuradas.
Ainda de acordo com o estudo, donos de boxes de mercados (91%) e de restaurantes locais (85%) também informaram ter interesse em comercializar carnes exóticas legalizadas e que essas “iguarias” apresentaram uma aceitabilidade de 100%.
No Brasil, ilegalidade favorece zoonoses
O problema do consumo de animais silvestres, sem que estes tenham sido criados, abatidos e processados em carne legalmente, é a transmissão de suas doenças, as zoonoses, a seres humanos. “Estudos comprovaram que grande parte das doenças infecciosas emergentes é representada por patógenos causadores de zoonoses e, destes, 71,8% têm origem em animais silvestres”, explica Vânia Maria França Ribeiro, médica veterinária e professora da UFAC.
Se na China essas ameaças espreitam os “mercados molhados”, que vendem todo tipo de carne fresca e onde as condições de higiene, refrigeração, criação e abate são precárias, no Brasil o problema das zoonoses está relacionado principalmente à falta de fiscalização e comercialização de carnes provenientes de caça (que é proibida, com a ressalva do javali em determinadas regiões sob a premissa de controle populacional) ou de cativeiros clandestinos.
Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), mais de 200 doenças transmissíveis se enquadram na definição de zoonoses. Elas são causadas por agentes etiológicos diversos, como bactérias, vírus e protozoários, mas sem que necessariamente o animal portador exteriorize qualquer sinal de que esteja com alguma alteração de saúde, como uma infecção.
Perigos que podem migrar para o prato
Além dos bichos anteriormente citados (tatu, paca, capivara), também são alvos de caçadores e criadores ilegais macacos, jabutis, gambás, antas etc. Já entre as zoonoses que eles podem transmitir aparecem a raiva (também adquirida de cães e gatos), tuberculose, cisticercose (que provoca convulsões, inchaços e cegueira), doença de Chagas, hanseníase, toxoplasmose, salmonelose, brucelose (cujos sintomas incluem dores articulares e tosse), hidatidose (causa fístulas e necroses) e até peste bubônica (a tão famosa “peste negra”, que pode ser fatal).
Algumas dessas zoonoses também podem ser compartilhadas por animais como bois, porcos e frangos criados de forma irregular e encontradas fora do país. “A triquinelose, que provoca alterações musculares graves, por exemplo, pode estar relacionada tanto ao consumo de carne mal cozida de veados [além de onças, ursos e morsas] como de porcos, que ainda estão sujeitos à hepatite E, presente em ostras e que na Ásia e na Europa tem ganhado importância”, explica Lauro Ferreira, infectologista da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia) e professor na EMESCAM (Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória).
Em 2018, um estudo publicado na revista PLoS Neglected Tropical Diseases mostrou que 62% dos tatus-galinha da Amazônia brasileira carregam a bactéria Mycobacterium leprae, que causa a hanseníase, conhecida no passado como lepra. O contágio dos animais ocorreu pelo contato com os colonizadores europeus e está sendo “devolvido” aos humanos por meio do consumo da sua carne.
No estado do Pará, 65% da população come tatu pelo menos uma vez ao ano e no Brasil são registrados anualmente mais de 25 mil casos da doença, sendo a maioria reportada nas regiões Norte e Centro-Oeste, informa o Ministério da Saúde.
Carnes silvestres exigem cuidados
Com tantos perigos —muitos ainda pouco compreendidos pela ciência—, haveria então uma maneira segura de se consumir carnes exóticas? Para os médicos, a resposta é sim, mas reafirmando e complementando o que já foi dito: é preciso adquirir esses alimentos de fontes certificadas legalmente e seguir cuidados de higiene, armazenamento, manuseio e preparo.
“Assar, cozer, ferver ou fritar bem a carne são medidas eficazes para eliminar os agentes de zoonoses, cujo risco de transmissão é maior em carnes cruas ou malpassadas”, explica Olzon. “Essa carne precisa ser exposta entre 67 a 70ºC, por 15 a 20 minutos”, acrescenta Ferreira.
A inativação com defumação e salmoura, no caso das salmonelas, costuma ser insatisfatória e, de acordo com um relatório do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos publicado na revista Morbidity and Mortality Weekly Report sobre exames feitos em carnes de caça, nem sempre o congelamento (que deve ser mantido a -20ºC) demonstra eficácia contra alguns tipos de zoonoses agressivas.
Portanto, na dúvida sobre a procedência e o estado do alimento, não o consuma, pois é até mesmo arriscado errar no ponto de cocção.
É importante destacar ainda que, mesmo sendo tomadas todas as precauções, há espécies que além do potencial de transmitirem doenças são venenosas e para serem consumidas exigem conhecimento específico de preparo.
É o caso, por exemplo, de escorpiões e algumas cobras, que mesmo passando pelo fogo precisam ter alguns segmentos do corpo retirados antes. No Japão, o peixe baiacu, também consumido no Brasil, requer até mesmo uma licença especial.
FONTE: VIVA BEM UOL