Frente a uma juventude endividada e desempregada, a inclusão da educação financeira no ensino básico pretende tornar o consumo dos brasileiros mais saudável a curto e longo prazo
É com uma mistura de surpresa e admiração que a professora de matemática Cândida Lúcia Nascimento de Carvalho vê a maneira como seus netos lidam com dinheiro com tão pouca idade. Aos 9 anos, Letícia, estudante do quinto ano do ensino fundamental, costuma guardar em um porquinho cada centavo que ganha dos pais ou de trocados. Seu irmão Henrique, de 12 anos, está ingressando no sétimo ano e vira e mexe aparece com alguma reflexão sobre os hábitos de consumo da família e o desperdício de recursos. Matheus, de 16 anos e aluno do segundo ano do ensino médio, já começou a investir e está ensinando a irmã mais velha, estudante de medicina, a organizar as finanças pessoais também. “Eles podem dar uma lição a qualquer adulto”, brinca a professora, que até pouco tempo atrás nunca tinha sido educada financeiramente. “Eu, matemática, sempre fui muito boa em álgebra e trigonometria, mas não sabia nada de educação financeira até o ano passado.”
Apesar de serem da mesma família, não foi do berço que os três jovens aprenderam a gerir as finanças ou a repensar hábitos de consumo — mas sim na escola. A fim de criar uma geração economicamente mais consciente e que possa ajudar a mudar o futuro de suas famílias, no início 2020, a educação financeira passou a fazer parte da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que orienta a elaboração de currículos e propostas e ensino de escolas privadas e públicas de todo o Brasil. Assim como a educação ambiental ou de trânsito, a educação financeira aparece como um dos temas transversais contemporâneos indicados a todos os estudantes brasileiros.
A base orienta que os alunos tenham contato com o tema desde o ensino infantil até o ensino médio, devendo ser abordado pelas mais diversas disciplinas (a tal transversalidade) — matemática, português, biologia, geografia, história etc. “Para a sociedade brasileira, a entrada da educação financeira na BNCC é uma conquista imensa”, comemora Claudia Forte, superintendente da Associação de Educação Financeira do Brasil (AEF-Brasil), que participou ativamente do processo de inclusão do tema no documento e também da implementação desse conteúdo em escolas públicas. “Hoje, somos uma das poucas nações do mundo a ter orientações sobre educação financeira nos principais documentos que regem a educação do país”, destaca.
Uma lição necessária
Por aqui, a educação financeira caminha a passos largos há pelo menos uma década, quando, em 2010, o governo federal lançou a Estratégia Nacional de Educação Financeira (Enef). A iniciativa, renovada por decreto em junho de 2020, foi criada para oferecer e incentivar ações que ajudem a população a tomar decisões financeiras com mais autonomia e consciência — e a AEF-Brasil é um dos braços responsáveis por colocar esses preceitos em prática, fortalecendo a cidadania.
A criação dessa estratégia nacional surgiu por uma demanda da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que desde a crise financeira ocorrida entre 2007 e 2008 tem se preocupado em evitar desastres econômicos como aquele. E uma das vias para mitigar esse tipo de problema é educar a população mundial sobre o funcionamento da economia. Atualmente, países como Nova Zelândia, Inglaterra, Austrália, Espanha, Itália e Estados Unidos são referências em educação financeira por seus projetos de ensino e centros de estudos econômicos. “Como você pode ver, são países majoritariamente do primeiro mundo. Cadê a África, a América Latina? Infelizmente, a educação financeira demora a chegar onde evidentemente se precisa dela”, observa Forte.
Por sua estratégia nacional de 10 anos, o Brasil é considerado um dos líderes latino-americanos no assunto, acompanhado por Peru e México, que também apresentam projetos e movimentos importantes em prol da conscientização econômica. Por aqui, a implementação desse ensino é mais que bem-vinda. De acordo com um levantamento divulgado em novembro de 2020 pela AEF-Brasil, 62,6% dos pais de alunos reconhecem que o tema é muito importante para a formação de seus filhos. A expectativa é de que a implementação do assunto nas escolas ajude a mudar a difícil realidade financeira dos brasileiros, marcada por endividamento e desemprego.
Segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) realizada em dezembro de 2020 pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), 66,3% dos consumidores estão endividados, 25,2% possuem conta ou dívidas em atraso e 11,2% não têm condições de pagá-las. Somam-se a isso os índices de desemprego durante a pandemia de Covid-19: a última edição da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) mostra que o desemprego durante o terceiro trimestre de 2020 bateu recorde de 14,6%, equivalente a 14,1 milhões de pessoas sem postos de trabalho.
Para mudar isso, Forte defende que há duas estratégias. A primeira delas é falar sobre dinheiro sem culpa — ele ainda é tabu para boa parte das famílias brasileiras. De acordo com o levantamento da AEF-Brasil, 41,6% dos alunos brasileiros nunca conversam com os pais sobre dívidas em atraso; apenas 35% falam sobre as contas de consumo com os mais velhos. E para tornar o assunto mais natural, é necessário se reeducar. Por isso, a segunda estratégia é capacitar os docentes que mediam esse processo de ensino-aprendizagem sobre questões financeiras.
Investir no professor
Foi esse o principal foco da equipe pedagógica do Liceu Franco-Brasileiro, instituição de ensino privada do Rio de Janeiro onde estudam os netos de Cândida, também professora do colégio há 35 anos. Segundo a assessora pedagógica Priscila Resinentti, responsável por preparar a inclusão da educação financeira no currículo da escola, a formação dos professores começou em 2019 e se estendeu ao longo de todo o ano de 2020, em que os docentes trocaram experiências e dicas de planos de aula. “Foi interessante notar que cada um tinha uma bagagem diferente sobre o assunto”, diz Resinentti. Alguns já tinham o costume de organizar gastos em planilhas ou questionar hábitos de consumo, enquanto outros, como Cândida, começaram a se educar financeiramente à medida que preparavam as aulas. “De alguma forma, tudo o que aprendemos para ensinar aos alunos também se aplicou às nossas vidas pessoais.”
Apesar das evidentes vantagens para os educadores, a capacitação de professores brasileiros ainda é escassa: 83,7% nunca participaram de qualquer formação sobre o tema, revela o levantamento da AEF-Brasil. Além disso, uma em cada três escolas ainda não conta com um projeto pedagógico voltado para a educação financeira. Das que o fazem, 41,4% inclui o assunto em aulas de matemática — mesmo que 79% concorde que o ideal seja tratá-lo transversalmente.
Uma das maiores dificuldades para realizar as capacitações e endereçar o tema é encontrar fontes confiáveis e que abordem a economia de forma integrada, não focando apenas em números ou em como ficar rico. “A gente não quer formar o ‘Lobo de Wall Street’, a gente quer um aluno consciente e educado financeiramente”, diz o professor Carlo Fabiano Maciel, coordenador da área de matemática que também ajudou a implementar o novo conteúdo no Liceu.
É importante entender que a educação financeira não está restrita à matemática e não se refere apenas ao dinheiro. Nas aulas de ciências, por exemplo, professores podem abordar os impactos ambientais do consumo, refletir sobre a disponibilidade de recursos naturais e geração de lixo. A partir das ciências humanas, como história e geografia, também é possível discutir relações entre os poderes político e econômico. Em português, a literatura pode ser usada para abordar aspectos psicológicos ligados ao dinheiro. Como define Forte, “a educação financeira também diz respeito ao nosso comportamento e discute nossos processos de tomada de decisão.”
Adequando a abordagem de acordo com a faixa etária dos estudantes, os alunos do Liceu acabaram aprendendo sobre linha de produção, uso de matéria-prima e recursos não renováveis, psicologia, direito e definição de objetivos. No ensino médio, investimentos e vida profissional são exemplos de assuntos trabalhados mais próximos ao dia a dia dos estudantes. Inflação, existência de bilionários e desigualdades no Brasil aprofundadas pela pandemia foram outros temas quentes que não puderam deixar de ser contemplados nas aulas.
Muito comuns nas redes sociais, os vídeos de unboxing, em que uma pessoa famosa abre os presentes que recebeu, também renderam discussões entre os alunos. Isso porque muitos acabam desejando ou comprando um produto sem necessidade, apenas porque foi indicado por influenciadores ou amigos na internet. “O aprendizado dos conteúdos curriculares precisa estar associado a uma leitura de mundo, não pode estar descolado da vida real”, afirma Priscila Resinentti. “Fala-se muito de preparar o aluno para o futuro, mas nós precisamos prepará-lo para o agora. Eles precisam entender a realidade agora, tomar decisões agora. Educação financeira não é algo que será usado apenas depois que eles saírem do ensino médio.”
Já em escolas públicas, a capacitação de professores tem sido feita por meio de projetos orientados pela AEF-Brasil. Só em 2019, 2.820 professores participaram de atividades de formação, impactando 153.480 alunos de 82 municípios distribuídos por 18 estados brasileiros e o Distrito Federal. As formações são realizadas em Polos de Educação Financeira mantidos pelas Secretarias Estaduais de Educação em parceria com universidades federais de cada estado.
Atualmente, há quatro polos de referência no Brasil: em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraíba e Tocantins. “É um trabalho de formiguinha”, conta Forte. “Vamos de Secretaria em Secretaria apresentar o programa de educação financeira criado por nós. A ideia é que elas percebam a importância de trabalhar o tema em sala de aula e validem o curso de capacitação, que é oferecido pelas universidades gratuitamente por professores de escola pública do ensino infantil ao médio.”
Além do trabalho de convencimento, a capacitação para escolas públicas ainda enfrenta dois desafios: a falta de investimento em educação e de vontade política. “Os secretários precisam se conscientizar, destinar verbas, observar os processos de capacitação disponíveis e implantar o tema em suas escolas. Mas essa é uma deliberação que apenas eles podem tomar”, explica Claudia Forte.
Fechando as contas
Com a discussão acerca do assunto ganhando cada vez mais espaço, um ponto positivo é que o número de projetos que visam educar a população em termos econômicos vem crescendo cada vez mais. De acordo com o 2º Mapeamento de Iniciativas de Educação Financeira, realizado pela AEF-Brasil em 2018, naquele ano o número de projetos dedicados a isso era 72% maior em comparação à primeira edição da pesquisa, feita em 2013. Outra grata surpresa é que, das mais de 500 iniciativas encontradas em 2018, 80% eram gratuitas e não tinham interesse comercial — há oito anos, eram apenas 36%.
As iniciativas online são as de maior alcance, e incluem canais no YouTube, blogs, sites e influenciadores digitais — que são o “meio” de estudo financeiro favorito dos estudantes: na pesquisa da AEF-Brasil apresentada em novembro do ano passado, 39,9% disseram preferir aprender a lidar com o dinheiro com os influencers. Observando essa tendência, o publicitário Alan Soares criou a página do Instagram @boletinhos, onde acumula mais de 95 mil seguidores.
Assim como a maior parte dos brasileiros, Soares não aprendeu a cuidar de finanças pessoais na escola, mas sim em casa, observando sua mãe sobreviver com o dinheiro contado do salário de enfermeira. Poupando cada centavo que podia, Soares cresceu sabendo priorizar e distinguir o que era uma compra necessária de uma impulsiva. Ficou famoso entre os amigos por sua responsabilidade e, em uma das tarefas da pós-graduação em marketing digital, decidiu criar um canal por onde conseguisse conversar com jovens que compartilhassem a mesma realidade — ajudando-os a pagar os boletos sem enlouquecer. “Hoje, o que mais me motiva é receber mensagens de pessoas que conseguiram limpar o nome ou conquistar um sonho com as dicas que dou na página”, afirma o publicitário. E a mãe de Soares é uma das seguidoras mais assíduas. “Engraçado que eu me inspirei nela para criar o @boletinhos e hoje ela diz que aprende muito com o conteúdo da página”, relata.
Ainda que o digital seja a principal forma de atingir milhares de pessoas, iniciativas presenciais também têm um grande papel na disseminação da sementinha da educação financeira. O Clube de Mercado Financeiro (CMF) é um exemplo deles. Gerido por alunos da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP) da Universidade de São Paulo (USP), o grupo dá palestras para crianças e adolescentes a respeito de finanças pessoais. Ao longo de 11 anos de existência, mais de 10 mil estudantes já foram impactados em 34 cidades de oito estados.
Além disso, o projeto tem parceria com a prefeitura de Ribeirão Preto, que seleciona todos os anos as escolas que participam das atividades. “Sempre tentamos trazer o assunto para o dia a dia do aluno — o que funciona, porque vemos que eles compartilham o que aprenderam com a família e muitos pais vêm procurar nossa consultoria para se organizar financeiramente”, conta Letícia Nascimento Trentin, aluna do terceiro semestre de Economia Empresarial e Controladoria e atual diretora de Marketing do CMF.
No instagram ou em sala de aula, cada iniciativa tem um papel a desempenhar nessa nova fase da educação brasileira. “Focando na capacitação e valorização do educador, sujeito ativo desse processo, seremos capazes de formar uma geração cada vez mais consciente e assertiva de suas escolhas”, acredita Forte. E assim, histórias como as da família Carvalho, da professora Cândida, estarão longe de ser uma exceção ou privilégio.
FONTE: REVISTA GALILEU