A maioria das vacinas que usamos envolve injetar um vírus ou bactéria no nosso corpo para que o sistema imunológico identifique a ameaça e crie formas de nos defender.
No caso dos vírus, eles podem estar enfraquecidos (sua capacidade de nos deixar doentes foi reduzida a níveis seguros) ou inativados (são incapazes de se reproduzir) — faz parte deste segundo tipo a CoronaVac – em setembro, o governo de São Paulo que testes com 50 mil pessoas demonstraram que a vacina é segura.
Há também as chamadas vacinas de subunidades, em que apenas fragmentos característicos de um vírus, como uma proteína, por exemplo, são produzidos em laboratório e purificados para serem usados na vacina.
A proposta das vacinas gênicas, como essa anunciada pela Pfizer, é diferente. Em vez de injetar em nós um vírus ou parte dele, a ideia é fazer o nosso próprio corpo produzir a proteína do vírus.
Para isso, os cientistas identificam a parte do código genético viral que carrega as instruções para a fabricação dessa proteína e a injetam em nós.
Uma vez absorvidas por nossas células, ela funciona como um manual de instruções para a produção da proteína do vírus.
A célula fabrica essa proteína e a exibe em sua superfície ou a libera na corrente sanguínea, o que alerta o sistema imune.
As vantagens das vacinas gênicas
A imunologista Cristina Bonorino explica que, no caso das vacinas atenuadas ou inativadas, é preciso cultivar uma grande quantidade de vírus para usá-los como matéria prima.
As vacinas gênicas dispensam isso. Basta criar em laboratório só a sequência genética desejada.
Isso exige uma estrutura de produção muito mais enxuta. “O custo também é provavelmente menor”, diz Bonorino, que é professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre e membro do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia.
Márjori Dulcine, diretora-médica da Pfizer Brasil, explica que, além desse tipo de vacina ser produzida mais rapidamente em grande escala, ela também é flexível.
“Sabemos que o Sars-Cov-2 tem uma grande capacidade de sofrer mutações. Então, se isso ocorrer, podemos rapidamente adaptar”, diz Dulcine.
As vacinas gênicas também eliminam o risco de uma pessoa ficar doente ao ser vacinada, o que pode ocorrer quando são usados os vírus atenuados.
Os vírus neste estado foram manipulados para serem menos perigosos, mas ainda assim eles conseguem se reproduzir lentamente.
Isso dá tempo suficiente para que o sistema imunológico de uma pessoa saudável reaja e, neste processo, aprenda a combater essa ameaça.
Mas, em casos mais raros, se o paciente é imunocomprometido, ele pode perder essa corrida contra o vírus, e a pessoa fica doente.
“Com esse tipo de vacina, não tem isso, porque ela não usa um micro-organismo vivo. É completamente sintética”, diz Norbert Pardi, da Universidade da Pensilvânia.
O tempo necessário para desenvolver uma vacina também cai drasticamente.
Normalmente, leva-se meses para ter uma pronta para os primeiros testes. Com a vacinas gênicas, demora semanas.
“A Moderna levou 42 dias do momento em que recebeu a sequência genética do vírus até começar os estudos da vacina contra a covid-19. Isso é quase impossível com outras tecnologias”, afirma Pardi.
O cientista diz ainda que os testes mostraram até agora que as vacinas gênicas contra a covid-19 geraram uma reação do sistema imunológico ao menos tão boa quanto a das outras candidatas.
“Então, elas não são apenas mais seguras e relativamente baratas de produzir, mas bastante eficazes. Isso é muito importante.”
Vacinas de DNA x Vacinas de RNA
Mas se estas vacinas têm tantas vantagens, por que ainda não há nenhuma aprovada para o uso em humanos? Um dos motivos é que a tecnologia é recente.
A primeira vacina foi criada pelo médico britânico Edward Jenner há pouco mais de 220 anos, na virada entre os séculos 18 e 19, para prevenir a varíola.
As vacinas gênicas estão sendo desenvolvidas há pouco mais de três décadas — e só mais recentemente começaram a dar resultados mais animadores.
A princípio, acreditava-se que seria melhor fazer esse tipo vacina usando DNA, a molécula que guarda todas as informações genéticas de um organismo – e que são usadas pelas nossas células para fabricar as proteínas que compõem o nosso corpo.
Mas, para que isso aconteça, o DNA precisa antes ser transformado em moléculas de RNA, que transportam essas instruções até a parte da célula onde as proteínas são produzidas.
Os cientistas acreditavam que, ao injetar o DNA do vírus em nós, ele poderia ser absorvido por nossas células e, uma vez dentro delas, transformado em RNA para que então a proteína desse micro-organismo fosse fabricada, o que daria início à reação imune.
Mas os testes feitos até agora mostraram que as vacinas de DNA não produzem uma resposta imunológica forte o suficiente em humanos. “Não sabemos exatamente por quê”, diz Pardi.
Outra alternativa é usar diretamente o RNA. O problema é que essa molécula é capaz de gerar uma inflamação muito forte em nós e que pode nos matar.
Também é muito mais instável do que o DNA e se degrada facilmente no nosso organismo.
“Temos em nós, por tudo quanto é lado, enzimas que atacam o RNA. Se você injetar ele sem que esteja protegido, ele é rapidamente destruído”, diz Jorge Kalil, diretor do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor).
Mas, nos últimos 15 anos, os cientistas encontraram uma forma de envelopar essa molécula para impedir que ela se decomponha e chegue até a célula. Também conseguiram reduzir o potencial inflamatório do RNA.
“A expectativa é que, daqui a algum tempo, quando a gente domine essa tecnologia, muitas vacinas no futuro sejam desse tipo”, diz Kalil.
Como estão as vacinas contra a covid-19
A pandemia criou algumas condições que provavelmente estão acelerando esse processo.
A covid-19 é uma doença nova, muito contagiosa e mortal, contra a qual ainda não existe uma vacina. Criar uma é urgente.
Fazer isso normalmente custa dezenas ou centenas de milhões de dólares, mas agora há muito dinheiro sendo investido por governos e organizações.
E, quando uma vacina estiver pronta, países do mundo todo terão interesse em comprá-la.
“A maior dificuldade para fazer uma vacina é dinheiro, porque a técnica é relativamente simples”, diz a imunologista Cristina Bonorino.
“Já existem vacinas de RNA patenteadas, mas elas não foram colocadas no mercado. A questão é: tem mercado? Agora, tem mercado e uma necessidade não atendida.”
Há 40 vacinas gênicas entre as 187 que estão sendo desenvolvidas contra a covid-19, segundo a Organização Mundial da Saúde. Dez já são testadas em humanos, e duas estão na última etapa desta parte da pesquisa.
O estudo da vacina da Moderna envolve 30 mil participantes nos Estados Unidos. A pesquisa da Pfizer/BioNTech/Fosun também conta com 30 mil voluntários nos Estados Unidos e em outros países, entre eles o Brasil.
Nos dois casos, as empresas já desenvolviam vacinas de RNA para combater outros vírus.
No caso da Moderna, era o Nipah, que é transmitido por morcegos e pode causar problemas respiratórios e uma inflamação no cérebro que são potencialmente mortais.
A Pfizer e a BioNTech estavam criando uma vacina de RNA contra o influenza, que causa a gripe.
O objetivo é fazer nossas células produzirem a proteína do coronavírus conhecida como espícula, que tem uma grande capacidade de gerar uma resposta do sistema imunológico.
“Acho que essas vacinas têm potencial. Os resultados publicados mostram que elas induzem à produção de uma grande quantidade de anticorpos que neutralizam o vírus. O teste final será ver se essa proteção é duradoura”, diz o imunologista Jorge Kalil.
O estudo da Pfizer vai durar dois anos, mas a empresa já apresentou resultados positivos nessa segunda-feira.
“O momento exige de nós agir rapidamente, com segurança e qualidade. Nosso papel é apresentar dados robustos às autoridades”, diz Márjori Dulcine.
“São elas que vão nos dizer se eles são suficientes.”
FONTE: BBC