Seu criador alegava que a quiropraxia tratava quase todas as doenças. Investigamos o histórico, o potencial contra dor nas costas e os riscos
Boa parte das pessoas veem a quiropraxia como uma técnica para diminuir dores nas costas através da manipulação da coluna e do pescoço. Mas ela na verdade surgiu como um tratamento que alinharia o organismo como um todo, tratando 95% de todas as doenças. Claro que não há quaisquer evidências científicas que suportem essa alegação — e, por outro lado, existe o temor de que as estaladas na espinha e no pescoço aumentem o risco de complicações sérias.
Daí porque a leitora Giulia de Paula nos perguntou se a quiropraxia pode provocar um acidente vascular cerebral (AVC).
Para responder essa pergunta e dar o contexto por trás dessa prática, Veja SAÚDE conversou com o Edzard Ernst, um professor da Universidade de Exeter, na Inglaterra, que estuda os reais efeitos de diferentes métodos alternativos, e com o ortopedista Alexandre Fogaça, presidente da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia – Regional São Paulo (Sbot-SP). Também vasculhamos as evidências científicas sobre o método.
O que é a quiropraxia
Apesar de as dores osteomusculares serem o foco da quiropraxia hoje, Edzard Ernst explica que, nos seus primórdios, o método era, digamos, mais ambicioso. Ele foi criado por Daniel David Palmer (1845-1913) em 1895, nos Estados Unidos.
De acordo com informações da revista Questão de Ciência, no livro de memórias de D.D. Palmer, “O Quiroprático”, publicado postumamente em 1914, a ideia de curar condições médicas dessa forma teria surgido por uma revelação espiritual enviada a ele pelo médico James Atkinson, que havia morrido 50 anos antes.
“Segundo D.D. Palmer, 95% de todas as doenças têm origem em subluxações da coluna. Portanto, a única cura se daria pela manipulação dessa estrutura”, conta Ernst, que lançou recentemente um livro sobre o tema (clique parar comprar), ainda sem tradução para o português.
Veja: “subluxação” é um conceito médico que significa o deslocamento parcial de uma junta. Mas, na quiropraxia, o termo pode designar “danos que não necessariamente causam manifestações físicas”. Ou seja, é a impressão pessoal do quiropata que define se há ou não uma subluxação.
Ainda de acordo com os princípios originais da quiropraxia, as subluxações bloqueariam a passagem da chamada “inteligência inata”, que por sua vez seria responsável por controlar todas as funções do organismo. Não há qualquer pesquisa que que tenha identificado essa inteligência inata ou a suporte de algum jeito. Pelo contrário.
Tempos depois de lançar a quiropraxia, D.D. Palmer afirmou que a inteligência inata era uma espécie de “Deus” dentro de cada pessoa. Sim, ele via seu método como uma religião que substituiria conceitos científicos de cura e tratamento.
“No início, ela era vista como uma panaceia. Só mais tarde a dor nas costas se tornou um foco dos quiropatas”, afirma Ernst. Em um artigo publicado no Journal of Pain and Symptom Management em 2008, esse cientista revelou que os primeiros panfletos divulgando a quiropraxia alegavam, por exemplo, que ela era capaz de curar insanidade, disfunção sexual, sarampo e gripe.
Com o tempo, houve um racha entre os profissionais que aplicavam a técnica. Parte tentou incorporar elementos científicos — e até por isso resolveram se concentrar nas doenças osteomusculares. Esse é o grupo dos “mixers”.
Já os “straights” seguem fiéis aos princípios originais de D.D. Palmer. Eles acreditam que as subluxações são a causa de quase todas as enfermidades, e a quiropraxia, a cura. Pesquisas já deixam claro que isso não é verdade.
A quiropraxia é atualmente regulamentada em diversos países — ela está enraizada especialmente nos Estados Unidos. A Federação Mundial de Quiropraxia inclusive é reconhecida e filiada à Organização Mundial da Saúde (OMS).
No Brasil, essa forma de manipular a coluna é oferecida no Sistema Único de Saúde (SUS). Ela integra a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), junto com outros métodos sem comprovação científica, como homeopatia, ozonioterapia e reiki.
A quiropraxia evita dores nas costas?
Vamos recorrer à ciência. Pesquisadores de instituições holandesas e dinamarquesas fizeram uma revisão sistemática de 47 estudos randomizados que compararam a quiropraxia com outras terapias contra a lombalgia crônica. Ao todo, foram incluídos 9 211 participantes, com idades entre 35 a 60 anos.
O resultado, publicado em 2019 no British Medical Journal, indicou que o efeito dessa técnica é semelhante ao de outros tratamentos recomendados. Nem melhor, nem pior.
No entanto, os autores pontuaram que os especialistas devem informar seus pacientes sobre os possíveis riscos da prática. A maioria dos efeitos colaterais esteve ligado a dores e rigidez muscular — embora a revisão conclua que muitos dos trabalhos analisados não avaliaram essa questão de maneira rigorosa.
Mais uma revisão, essa publicada no respeitado periódico científico Jama, investigou a quiropraxia contra a dor lombar aguda. Após checar 26 estudos, os experts calcularam que ela foi associada a melhorias modestas em até seis semanas.
O benefício foi estatisticamente igual ao apresentado por anti-inflamatórios não esteróides. Além disso, a revisão destaca que muitas das pesquisas incluídas apresentavam limitações.
Outra revisão, feita por universidades canadenses, australianas e americanas focou no tratamento de dores no pescoço. Os experts concluíram que o manejo e a mobilização da estrutura não trazem benefícios isoladamente — apenas se usados em conjunto com exercícios.
No fim das contas, a literatura científica não traz ainda uma resposta clara, embora resultados assim já deixem claro que a quiropraxia não é um milagre. Há indícios de que ela pode ajudar a aliviar dores nas costas, assim como outros métodos. “Todas as outras afirmações feitas por quiropatas não são apoiadas por boas evidências”, acrescenta Ernst.
Os riscos da quiropraxia
Vamos começar pelo tema que deu origem a esse texto: o AVC. “Ele pode acontecer após manipulações bruscas do pescoço, que causam a dissecção de uma artéria, levando a um derrame, às vezes seguido de morte”, explica Ernst.
No Hospital Universitário de Copenhague, na Dinamarca, profissionais chafurdaram os dados de diferentes revisões sobre possíveis efeitos colaterais. A partir de 118 artigos, eles concluíram que as reações adversas graves mais reportadas foram AVC, dor de cabeça e dissecção da artéria vertebral.
Mas, justiça seja feita, os cientistas afirmaram que não dá para tirar conclusões claras. Pra ter ideia, enquanto um trabalho estimava um efeito colateral grave a cada 20 mil sessões, outro sugeria um a cada 250 mil. Essa variação provavelmente indica que necessitamos de mais investigações de alta qualidade para bater o martelo sobre a segurança da técnica. De qualquer modo, o risco não está descartado — nem de perto.
Independentemente da questão do AVC, Alexandre Fogaça destaca que, muitas vezes, desconfortos nas costas não decorrem de problemas na coluna. Logo, recorrer à quiropraxia sem um diagnóstico certeiro pode adiar o tratamento adequado. “Só com a avaliação de um médico é possível concluir qual o caminho a seguir”, alerta o ortopedista.
A Associação Brasileira de Quiropraxia (ABQuiro) alega que, como todo método terapêutico, ela possui indicações e contraindicações precisas. Segundo informado no site da entidade, quando realizada por pessoas qualificadas, os riscos são reduzidos.
Edzard Ernst discorda desse argumento. “As reações adversas mencionadas nos estudos referem-se a quiropatas totalmente qualificados. Eles negam, porque isso seria ruim para os negócios”, critica.
Por fim, há um receio de que o paciente acredite que a quiropraxia consiga controlar ou curar diferentes doenças e, a partir daí, abandone tratamentos comprovadamente eficazes. D.D. Palmer, por exemplo, era contra o uso de vacinas.
Diante de uma terapia com origem totalmente não-científica, sem benefícios superiores aos métodos já difundidos e com possíveis efeitos adversos perigosos, recomenda-se muita cautela. Se você estiver com qualquer problema nas costas, procure um médico qualificado antes de mais nada.
Fonte: Veja Saúde